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   n° 39

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No Ônibus
por Gibran Tschiedel

O ônibus parou e o PM subiu pela porta dianteira, eu vi, seguiu a viagem de pé, na frente do primeiro banco, atrás do motorista. O velho de boné que estava sentado no primeiro banco ficou olhando pro PM, um velho desdentado e meio gagá, olhando como se quisesse saber porquê o sujeito tinha parado na frente dele, como se nunca tivesse entrado num ônibus antes. Não gosto de gente assim, que se faz de imbecil pra passar bem. O velho parecia admirado de ver um cara fardado de polícia bem do lado dele, e começou a puxar papo, eu vi, eu tava do outro lado, do lado direito do ônibus, sentado bem no meio do carro, no corredor. Normalmente, eu não fico olhando pros outros quando eu tô dentro de um ônibus, a não ser que seja mulher. Mas eu achei esse velho tão babão e achei esse porco tão certinho, olhando pra fora do ônibus o tempo todo, em posição de quartel, como se um filho da puta de um capitão ou de um tenente tivesse atrás dele berrando pra ele ficar bem reto, que acabei prestando atenção nas figuras.

O velho falava com a cabeça torta, olhando pra cima, pros olhos do PM. Disse que não era que nem os outros, que falavam mal dos polícia, disse que gostava dos polícia e que sempre defendia os polícia das pessoas que xingavam eles, dizendo que os polícia eram: ladrão, sem-vergonha, vagabundo, que só cuidavam dos rico. O polícia ficou olhando com aquela cara de cu que eles aprendem no quartel, assim ó, com jeito de estar cagando e andando, compenetrado. Ele tava bem barbeado, era meio alemão, os olhos azuis. Não gosto de PM alemão de olho azul, se bem que eles nunca me encheram o saco, mas não gosto porque eles são os mais grossos quando falam com a negrada. Acham que só porque têm cabelo amarelo e olho azul são superiores ao resto que não tem cabelo amarelo nem olho azul nem verde. O velho também era meio alemão, acho que até devia ter olho claro. Tinha era um monte de mancha na cara, acho que do sol e se era do sol é porque devia ser bem claro mesmo. O velho perguntou sobre os penduricalhos do uniforme dele. Queria saber o que era cada merdinha bordada ou alfinetada no uniforme do polícia. Apontava pra os ombros e o peito e perguntava. O PM acabou respondendo. Resposta de quartel: uma palavra, às vezes duas, e voltava a olhar pela janela.

Teve uma hora que o PM parou de olhar pela janela e ficou olhando pro fundo do ônibus. Parecia nem escutar mais o velho. Eu fiquei curioso pra ver o que era que o PM tava encarando lá no fundo do ônibus quando ele baixou uma mão do puta-merda e a botou no coldre do tresoitão. Me virei. Um cara com jeito de marginal tava encostado na grade que separa quem pagou de quem não pagou. Acho que o cobrador também tava desconfiado do cara com jeito de marginal, não consegui ver direito, agora, o cara, que era bem guri, viu o PM secando ele e baixou a cabeça, se fazendo de sonso, que nem o velho, isso eu vi. A gente tava passando por um trecho grande de viela e descampado, acho que o cara entrou na última parada antes deste pedaço de fim-de-mundo. A buraqueira do asfalto fazia o ônibus corcovear que nem esses cavalo de rodeio. Aquele lugar sempre foi uma merda.

Voltei a olhar pra frente e deu pra escutar direitinho o velho falando pro PM que o cara que tinha acabado de entrar tinha cara de ladrão, que não agüentava mais esses guris assaltando ônibus, que era um desrespeito, que ele, graças a Deus, nunca tinha sido assaltado antes, mas que conhecia muita gente que tinha sido roubada, e o PM foi ficando nervoso com aquele papo, não desgrudava o olho do fundo do ônibus. O velho sacou que o PM tava assim, meio querendo agir, meio não querendo, vai ver porque tava sozinho, eles sempre apertam quando tão sozinhos, e disse que também não dava pra desconfiar de todo mundo, que era preciso dar uma chance pro guri, onde já se viu. Só faltou dizer todo mundo é filho do Homem, afinal das contas.

O velho era bom de papo, bom mesmo, sabia acalmar as coisas. O polícia foi meio que largando de mão o cara, meio que abaixando a vista pro velho, meio que olhando de novo pela janela. Acho que todo o ônibus tava era morrendo de sono, já tava noite, todo mundo tinha que acordar cedo amanhã. E eu ouvi. O cara berrou, assalto, e o polícia se virou pro fundo do carro, assustado, e eu virei pra trás, bem de cantinho. O cara tava na roleta, apontando uma arma pro PM. Com a outra mão, batia na mesinha do cobrador, apressando o cobrador a liberar o apurado. Os passageiros baixaram as cabeças e se encolheram nos bancos. O PM era o único que não estava sentado. Aquela fileira de banco cheio, que nem um túnel e lá no final, ao invés da saída, o polícia sozinho, igual a um alvo. Eu vi. Acho que o assaltante bobeou uma hora, eu não vi, devia tá prestando atenção na grana que o cobrador juntava, devia tá prestando atenção nos passageiros atrás dele pra ver se eles tavam na deles mesmo, devia tá olhando pros lados pra ver se tinha mais algum polícia sentado nos bancos. Nessa hora o polícia tomou coragem e pegou o cabo do tresoitão. Enfiei a cabeça pra dentro do banco, e ouvi um barulho estranho lá na frente. O barulho não parecia o de um polícia sacando a arma. Levantei a cabeça. O velho tinha caído por cima do polícia, caído quase pra fora do banco, o alemão tava suando, o velho parecia que tava tendo um treco, se tremia todo. Nem posso dizer que o PM bobeou, ele não pôde fazer nada mesmo, deixava o velho cair de cabeça no chão ou segurava o coitado. O tiro foi no peito, bem no coração, eu vi. Nunca vou esquecer o barulho de um tiro dentro de um ônibus, é um negócio estranho à beça, parece um trovão, um trovão daqueles de pesadelo, daqueles que a gente escuta uma ou duas vezes e só, quando ainda é criança e acorda com a cama mijada. Não quero mais ouvir isso, não quero mais ouvir o berreiro da mulherada. O PM caiu pro lado e pra trás, pra dentro do banco onde o velho tava sentado, eu vi, eu não conseguia parar de olhar. Pensei que ia ter outro tiro, quando o ônibus parou e o velho pegou o tresoitão do polícia, e empurrou o corpo do polícia pra fora do banco. Um velho que nunca teve nada na vida, um pobre-coitado cheio de mancha na cara, não ia perder nada, velho bocão, velho matraca, no mínimo ia fazer uma cena, enfrentar o filho da puta cara a cara, e os outros que pagassem a besteira. O velho pegou o revólver, nem parecia mais doente, se levantou, e era um silêncio de morte, e apontou o revólver pro motorista e mandou ele abrir a porta da frente. Entrou aquele ar frio, naquela região era sempre mais frio, por causa dos terrenos baldios e das vielas de terra batida. Ele olhou pro bandido, dava um tiro e fugia pela porta aberta, duvido que acertasse, e falou pro motorista abrir a porta de trás. Eu vi, o ladrão olhou assustado, a porta de trás aberta, tava com a grana na mão, eu não entendi na hora. O velho olhou pro PM e disse vamô embora, filho, que este aqui já era e os dois desceram, cada um por uma porta, e fugiram pro mato.

 © Gibran Tschiedel 2003
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Gibran Tschiedel DippBIO: Gibran Tschiedel Dipp nasceu em Porto Alegre/RS, Brasil, em 1975. Estudou cinema e dramaturgia em Fortaleza, no Instituto Dragão do Mar, e é publicitário. Vencedor do Prêmio Santander Cultural/Prefeitura de Porto Alegre, para o roteiro de longa-metragem O Homem que Roubou o Mundo, com Gustavo Spolidoro e Ivana Verle. Seu romance Pontes na Cidade foi pré-selecionado no I Prêmio Literário Casa de Cultura Mário Quintana/RS, concorrendo com mais 102 romances de 12 estados brasileiros. No Ônibus faz parte do livro de contos O Plástico que Sai, inédito.

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noviembre-diciembre  n° 39

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